Medo do Corpo?

Quem tem medo do corpo?


"É que meu corpo, não sei porque ... ele começa a tremer sozinho, primeiro dentro, depois fora, meu corpo.. ele se revolta contra mim". Estas foram as primeiras palavras de uma jovem de dezessete anos levada pelos pais ao ambulatório público onde trabalho. Queixas envolvendo uma suposta autonomia corporal que desperta medo e que é vivida como descontrole, ou até mesmo como revolta, são frequentes e independem do sexo, da idade ou da classe social. Em ambulatórios públicos ou em consultórios particulares, médicos e psicanalistas escutam-nas cotidianamente. Por que razão? Há indubitavelmente um saber sobre o corpo, uma relação epistemo-somático gradativamente construída no decorrer dos séculos. Todavia até o advento da psicanálise na aurora do século que passou, uma das dimensões do corpo permanecia excluída dessa relação".


Nesses termos encontram-se reunidos em O medo que temos do corpo, uma série de textos que perscrutam o nosso temor de que não sejamos nada além de um corpo que se consome. A autora, Vera Pollo, dona de uma invejável capacidade de transmissão, inicia sua obra convidando o leitor a percorrer, com Lacan, um trajeto de quase três séculos - da obra de René Descartes (1596-1650) à de Sigmund Freud (1856-1939) -, com o objetivo de demonstrar que, na aurora do século XX, a Psicanálise franqueou o retorno do corpo então exilado pelo trajeto cartesiano. Se antes, as experiências subjetivas, purificadas conforme o método cartesiano, passavam a constituir o fundamento único da certeza, a Psicanálise desde Freud, segundo a autora, estende o corpo aos registros lacanianos do simbólico, do imaginário e do real que correspondem, respectivamente, ao corpo histérico, ao corpo narcísico e ao corpo pulsional de fusão e desfusão de Eros e Tanatos.
Os desdobramentos desse texto inicial não poderiam deixar de logo desembocar no olhar psicanalítico sobre o feminino, a fonte inesgotável da melodia pulsional que nos habita. Num capítulo dedicado ao aumento vertiginoso de sintomas manifestos diretamente no corpo, sem que a paciente expresse um conflito psíquico subjacente, a autora apresenta uma das formas mais inquietantes de mal-estar de nossa época: a anorexia nervosa. Com muita sensibilidade disseca a resposta trágica da anorética à impossibilidade de enunciar outro desejo, que não o de "comer nada". Da devastação feminina à cicatriz indelével do trauma, o leitor se confronta com os efeitos de uma clínica voltada à singularidade de cada caso e a potência de uma teoria que não se deixa apreender por verdades apriorísticas e universais.
No capítulo dedicado à arte, a autora explora a função da escrita e da pintura na subjetividade artística. "A mentira do ser" de Artaud é um paradigma da angústia, batizada, por esse escritor, com inúmeros nomes que permanecem, no entanto, paradoxalmente mudos, pois a angústia é, como diz um outro poeta, "fala entupida". A pintura de Dali, que não deixa de ser uma escrita para nossa autora, e nesse sentido mostra-se extremamente freudiana, ganha no texto um olhar especial que testemunha sua fidelidade ao método de leitura à letra de uma obra de arte. Mishima: vozes de família, é uma lição sobre o sadismo do supereu e os paradoxos dessa instância, sem o qual, por outro lado, não haveria cultura e laço social. James Joyce, o autor que conduziu Lacan a reelaborar pontos fundamentais da psicanálise, não assusta nossa autora, conforme o esperado pelos críticos literários que se escandalizam com a forma em que o escritor fala do corpo. Muito ao contrário: Vera mostra com maestria que a escrita do autor de Ulisses criou recursos literários que revelam fantasias, alucinações verbais e visuais. Daí o porquê de se considerar Joyce artífice de lalíngua, aquele que nos ensina, conforme observou Lacan, a lógica do sinthoma.
Sabemos que com a noção de sinthoma, o caráter patologizante da clínica psicanalítica é esvaziado; o que significou desvencilhar, definitivamente, a descoberta freudiana do ideal de heteronormatividade e fortalecer a legitimação de novas manifestações da sexualidade. Sob o título, "Corpos contemporâneos", o último capítulo abre com uma afirmativa contundente: "não há transexual fora do discurso da ciência". A intensão da autora é a de responder à pergunta que Lacan endereçou aos analistas em função da tarefa que Freud legou a seus herdeiros: saber levar o ser-para-o-sexo. Trata-se de um estudo sobre a função política da psicanálise em sua crítica ao cientificismo. Se o discurso é a via possível para subverter e atravessar os destinos da anatomia, então só resta aos analistas escutar. Uma bela discussão sobre trabalhos de colegas e autores de outras áreas em torno do transexualismo traz à tona o problema do diagnóstico diferencial da demanda, cada vez maior, de mudança de sexo. Vale a pena se debruçar sobre esse capítulo para entender um pouco melhor a ideologia que está por detrás de algumas teorias segregacionistas que "animam" o imaginário social.
Encerrando, um texto que leva o título do livro apresenta uma discussão profícua com alguns pensadores das mais diferentes áreas do conhecimento sobre a body art, manipulações e intervenções corporais. E como não poderia deixar de ser, o cenário de nossa "sociedade de consumo" é o pano de fundo de um tempo que testemunha o corpo tratado como capital e como fetiche. Duplo ameaçador do sujeito, o corpo, diz nossa autora, deve ser objeto reluzente e produzir lucro na lógica capitalista. Parceiro e inimigo que necessita ser cuidado, o corpo na atualidade é a "casa e o caixão, o mais quente e o mais gelado dos abrigos da subjetividade".



Enfim, para encerrar essa resenha, gostaria de dizer que na babel freudo-lacaniana que se ergueu no cenário psicanalítico contemporâneo, um livro como o de Vera Pollo merece saudações pela coragem das teses que sustenta, linguagem clara e precisa e por estar totalmente despido de ecolalia e da repetição do mesmo tão comum nas publicações psicanalíticas. Sem dúvidas a autora escolhe transmitir o legado de Freud e de Lacan, desde a terceira margem do rio, aquela que segue o fluxo caudaloso da pulsão. Resultado da aposta que faz no desejo de transmissão de um saber que não se sabe e cuja força subversiva lhe reserva o destino de permanecer pontual e evanescente.


Do livro: "O medo que temos do corpo", Vera Pollo, 7 Letras, Rio de Janeiro. 2012.
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Fonte: Scielo.com 



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